terça-feira, 21 de outubro de 2008

Do néctar e passarejos

Acordo. Me espreguiço. Sinto na brisa leve o doce néctar do que chamamos de ser e de estar. Uma xamã me disse que eu deveria comer mais raízes. A prata das águas, como ontem e como amanhã (quando o tempo não nubla), reflete o mesmo sol que avistamos no céu. Devem ser oito agora. Lembro-me que tinha reservado este momento para pensar a cultura. Essa pequena auto-cobrança desperta a minha rebeldia. Resolvo colher pedras.

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O cachorro é efusivo ao me perceber. Algo na minha linguagem, em como eu escrevo essa coisa toda, me incomoda. Pulos, lambidas e empurrões. Logo o focinhento pula-pula não dedica mais sua atenção a mim e passa seguir alguma trilha de cheiros. Como posso abordar a cultura nesse momento? Um aspecto unicamente antropológico deixaria muita coisa de lado. Acho melhor adiar um pouco mais esses pensamentos.

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Recolho um pedregulho. Começo a compor um dialogo. Somos o eu de agora e o eu menino pequeno.

Eu: O que é existir?
Menino: É estar vivo. Estar sendo. Ter sido.
Eu: Mas.
Menino: Oi?
Eu: As pedras. Elas existem?
Menino: Sim. Olha aqui. Posso pegar e tacar lá longe e sentir bem o cheiro dela, que é cheiro de coisa suja.
Eu: Então existir não é só o que está vivo. Será que é tudo o que se pode sentir? É o que pode ser sentido?
Menino. É.
Eu: E a noite, como a gente sente a noite?
Menino: Pelos olhos, pelo medo.
Eu: E as idéias?
Menino: Que é que tem as idéias?
Eu: Como é que a gente sente as idéias?
Menino: Ué, tendo elas, jogando elas fora, contando para os outros, guardando pra gente.

Volto da conversa e jogo o pedregulho disforme longe. Existir: o que se pode sentir. Uma pedra não pode me sentir. Eu existo para a pedra? Provavelmente não. Mas mesmo assim eu posso arremessá-la longe ou carregá-la no bolso para onde for. Se quiser, a jogo em um preparado de concreto e construo um prédio com cento e dezoito andares com ela ali no meio. Em que andar iria parar aquele pedregulho? Vigésimo andar: meias, roupas de baixo e roupas de praia. É lógico que todo esse pensamento só é possível dentro dos meus preconceitos. Para alguns habitantes do extremo norte do Brasil aquela pedra é um ser exatamente como eles e tal reflexão sobre o mundo não existir para ela provavelmente causaria risos.

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Não me achem original, por favor. No fundo, estes são questionamentos eternos dos humanos ocidentais, enraizados em uma cultura que guarda uma historicidade mundial, mas que foi bastante estruturada na Europa em períodos específicos (Será que eu disse alguma coisa ou eu não disse nada? We vote for nada!). Hamlet, o ator-louco-ator rubricado por Shakespeare já se perguntava: existir ou não existir, esta é a questão.

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O mais verossímil para mim é que a existência nem sempre existiu e, portanto, foi inventada pelo homem. Resta saber: ao dar origem à existência, estávamos apenas nomeando um sentimento latente ou esse é um conceito construído? Neste momento me vem na cabeça a idéia da morte. Certamente a existência surgiu baseada na inércia que assumimos quando nosso organismo deixa de funcionar, quer dizer, baseada no espanto daqueles que ficam e não sabem o que aconteceu com aquele que se (foi?). Francamente! Então a existência, o existir, está baseado em sentimentos! Isso quer dizer que na verdade ela já existia antes de sua origem-nome? Não. Não e sim. Na praticidade de dizer o vivo existe, o morto não existe (eis uma simplificação binária do existir, sem considerar a pedra e a noite), apenas nomeando situações-sentimento, pode se dizer que esse existir estaria posto (sem uma designação, claro) até para os animais, ou seja viria de antes. Assim, o medo de deixar de existir também estaria posto aí. De qualquer maneira, a partir do momento que essa idéia –existir e não-existir – entra no repertório do homem, ela passa a ser culturalmente construída e rompe, de certa forma, com a sua pré-existência (onde estaria mais perto da natureza). Céus! Como esse trecho ficou chato!

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O nascimento das idéias-conceitos, pelo menos dos primeiros deles (e existir provavelmente está entre os primeiro deles), ainda eram muito ligados à natureza, já que o homem não tinha um repertório argumentativo-retórico-abstrato muito grande. Porém, a humanidades aplica suas vivências, imaginação e vontades às suas idéias e assim, elas se tornam tão orgânicas quanto ela. E de repente, Deuses existem, a sorte existe, a nuvem existe e por aí vai (eu quis repetir o último trecho da coisinha de cima mesmo).

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Bom, agora eu queria, sem ter lido “O ser e o Tempo” e “O ser e o Nada”, dar um chute no existencialismo. (Me desculpem, mas vou interromper toda essa argumentação de castelo de cartas no meio. Alguém aqui pensou que este texto era sério?). Desprezando a construção cultural do termo existir - e Clarice Lispector que me desculpe com toda suas divagações literárias - nossa única reflexão decai sobre a vida e a morte. Estar vivo, poder morrer e estar morto. Joga-se no lixo uma grande pilha de livros – principalmente franceses e principalmente dos anos sessenta – que discutem a existência dentro de uma claustrofóbica concepção culturalmente limitada e enauseante, como o teatro no Brasil, que é feito apenas para pessoas que também fazem teatros – uma discussão fechada dentro de um único recinto. Pronto, é isso: insinuo que o existencialismo não é universal, que não é um questionamento do homem em si e que – entre comunhões com baratas ou árvores – pode ser entendido como uma doutrina. (O departamento do estado de São Paulo acaba de declarar o jovem Javier Mamesco – este que vos escreve – como um grande prepotente, ambicioso, ousado, vulgar e biruta o bastante para contestar pilares de nossa cultura sem ter conhecimento, linguagem, entendimento e qualquer outra coisa suficientes).

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No final, penso que pouco falei de cultura, fui um pouco chato e talvez não tenha dito nada. Nem expliquei direito o que é esse existencialismo que eu insinuei não ser universal. Bom, pelo menos, um verso bonito me vem à cabeça: aquilo que há de insuficiente em mim é o que me da forças e como tudo em mim é insuficiente, quando reclamo de fraquezas tenho qualquer coisa de exagero em meus dizeres. Chamo o cão para perto de minha mão, onde eu possa acariciá-lo. Sinto um alívio: Esta noite, quando me deitar, serei menos existencialista do que era ontem, ou pelo menos me sentirei assim. Dormirei muito melhor. Algo ecoa com um sabor de riso, medo e ternura na parede do meu quarto: e o que a gente faz enquanto ela não chega?

2 comentários:

l u a * disse...

fiquei passada quando o-o-o-o não vinha mais. daí, eu caí aqui.
e tuas palavras tem um pêso de doer, em mim, obrigada.


(é tanto o ar, que sufoco na falta de respiro.)

Anônimo disse...

Seus textos são realmente muito bons. Parabéns!